O Carimbó Pede Passagem
Por Nélio Palheta
Esta crônica é uma homenagem aos músicos da Vigia que tocam carimbó, também festejados neste Dia do Músico
Foi-se o tempo em que era proibido fazer barulho e perturbar o sossego público. E isso estava no Código de Posturas da Vigia de 138 anos atrás. Coisa do século XIX, quando não se podia “tocar tambor, carimbó, ou qualquer outro instrumento de percussão quer perturbe o sossego público durante a noite”, dizia o artigo 48, parágrafo 2º, da Lei 1.162, de12/04/1883
Teriam os vereadores da Vigia copiado o Código de Posturas de Belém, de três anos antes (Lei n.º 1.028, de 5/05/1880)? A lei vigiense tem a mesma redação do artigo 107, parágrafo 3º do Código da capital. Em Belém, as pessoas que não obedecessem a essa determinação eram presas
Talvez não se tratasse de ostensiva proibição ao carimbó, restringida a lei ao cuidado com o sossego público, especificamente. Afinal, àquela o comportamento social, as relações na comunidade eram bem diferentes das de agora. E a escravidão era uma prática que hoje soa terrível modelo de produção econômica. O imaginário popular e as conclusões acadêmicas de hoje, facilmente identificam em restrições as restrições legais como aquelas, a segregação à cultura negra. E não deixa de ser, afinal o carimbó, chamado zimba na Vigia, refletia a realidade dos negros escravizados. Reclamar a quem, se a própria Igreja aceitava cativos. Ainda bem que os negros podiam cantar e dançar. Não se pode dizer que só no Tauapará os negros cantavam, plangentes, sem dúvida, para retratar o cotidiano do cativeiro: “… O negro estava no tronco…//… Não apanha, não apanha
/ O negro não vai apanhar…”. Era uma das muitas músicas que conjunto “Os Tapaioaras” executava. E isso não pode se perder
Indissociável da cultura popular vigiense, assim como as bandas tradicionais de música, o carimbó pede passagem na comemoração do Dia do Músico. Faço essa remissão ao Código de Postura de 1883 ao reler uma mensagem de e-mail que recebi em 2002 do amigo Vicente Salles, falecido em 2013. Vicente mandou-me de Brasília um artigo intitulado “Carimbó da Vigia ou Zimba” (leia em seguida), discorrendo com riqueza de detalhes sobre esse tema muito caro à cultura vigiense, quanto falamos em música e dança de tradição, folclore, territórios culturais, cultura negra, quilombo. E Tauapará – lugar que não perde a conexão mais íntima com a Vigia, mesmo sendo um povoado do município de Colares
Vicente escreveu o artigo quando eu era presidente da Fundação de Telecomunicações do Pará (Funtelpa) e a Rádio Cultura do Pará editava, naquele ano, o CD “Os Tapaioaras”. Sim, documentamos um belo acervo de carimbó – um disco raro
Vicente Salles esteve em Vigia no fim da década dos anos 1960, acompanhando a mulher dele, Marena Isdebski, que pesquisava o carimbó. E foi ele quem produziu o libreto do disco que perpetuou o zimba da Vigia em mídia digital, quase 20 anos atrás
Ao celebrarmos o Dia do Músico, a Secretaria Municipal de Cultura e Turismo difunde o vídeo “ZIMBA – A RAIZ DO CARIMBÓ”, produzido em Vigia por Paulo Cordeiro, Augusto Leal (roteiro e direção), Will Lee e Oleno (Amazo) da Silva Alcântara (filmagens e entrevistas), Victor Silva (edição). As músicas de carimbó são do grupo “Os Manos”; a trilha incidente, da Banda 31 de Agosto. Vale a pena ver esse vídeo (https://www.youtube.com/watch?v=vttFmhQWbmg)
Nélio Palheta é jornalista e Secretário de Cultura e Turismo de Vigia de Nazaré
Carimbo da Vigia ou Zimba
Vicente Salles
O carimbo é uma das mais antigas expressões da cultura popular paraense, com farta documentação obtida desde o século XIX, quase simultaneamente em Belém e na Vigia. Zimba é outra denominação local, na Vigia, donde se expandiu para o Amapá. Esta palavra parece ser corrupção de samba, indicativa de dança de umbigada. Todavia, deve-se levar em conta que em África, zimba é nome da tribo que invadiu o território dos macuas, no Cabo Delgado, imprimindo-lhes forte influência cultural. E que negros macuas foram trazidos para o Pará em larga escala no tempo do tráfico de escravos
Anterior aos registros bibliográficos conhecidos, encontramos na legislação paraense a Lei n.º 1.028, de 5/05/1880, Código de Posturas Municipais de Belém, artigo 107, parágrafo 3º, que proibia: “Tocar tambor, carimbó, ou qualquer instrumento que perturbe o sossego durante a noite”. Semelhantemente, o Código
de Posturas da Vigia (Lei 1.162, de12/04/1883), artigo 48, parágrafo 2, proibia: “Tocar tambor, carimbó, ou qualquer outro instrumento de percussão quer perturbe o sossego público durante a noite”
O Correio Paraense, Belém, 29/08/1893, falava do “som esbodegante de um carimbó captivo”, isto é, de negros, dançado numa barraca ali na rua João Balbi, no bairro do Umarizal. O Pará, Belém, 28/07/1900, noticiava a prisão de Antônio de Moraes e outros porque tocavam e dançavam carimbó em sua casa e teriam resistido à ordem de cessar com o forró
Essas notícias e disposições proibitivas, transcritas na pesquisa de Marena Isdebski Salles e o autor desta nota, publicada na Revista Brasileira de Folclore n° 25, 1969, “Carimbo: trabalho e lazer do caboclo”, mostram as peculiaridades já fixadas pela tradição: o nome, corimbó e, mais frequentemente, carimbó; o toque dos tambores; a função noturna – o que permite a associação com os batuques e com as bulhas perturbadoras do sossego público
O termo só aparece na bibliografia disponível no Poranduba amazonense, de Barbosa Rodrigues, 1890, p. 275: “O Karimbó é o gambá, tambor africano, que se toca com os dedos das mãos”. Barbosa Rodrigues acredita que é um instrumento puramente africano, “mas que o indígena aceitou”
Entrou depois nos vocabulários regionais: VICENTE CHERMONT DE MIRANDA: “Atabaque, tambor, provavelmente de origem africana. É feito de um tronco, internamente escavado, de cerca de um metro de comprimento e de 30 centímetros de diâmetro; sobre uma das aberturas se aplica um couro descabelado de veado, bem entesado. Senta-se o tocador sobre o tronco, e bate em cadência com um ritmo especial, tendo por vaquetas as próprias mãos. Usa- se o carimbó na dança denominada batuque, importada da África pelos negros
cativos”; (Glossário paraense 1906, p. 20). RAIMUNDO MORAIS: “Tambor. Feito de um tronco escavado numa das extremidades. Nessa parte aberta é colocado o couro curtido de veado. O tocador do instrumento senta-se-lhe em cima e, com as mãos, zabumba-o nos batuques, que é uma dança amazônica de origem evidentemente africana, trazida, de certo, pelos negros cativos dos tempos coloniais” (O meu dicionário, vol. 1, p. 116). AMANDO MENDES: “Tambor, de origem africana, de couro, de ordinário adaptado sobre tronco oco, ou um dos lados de barril” (Vocabulário amazônico, 1942, p.36). CARLOS ROCQUE transcreve parte do verbete do Dicionário do Folclore Brasileiro, de Luis da Câmara Cascudo (Grande Enciclopédia da Amazônia, vol. 2, p. 442). Há ainda para consulta extensos verbetes no citado Dicionário do Folclore Brasileiro, de L. da C. Cascudo, 1962, com informações de Bruno de Menezes, e no Dicionário Musical Brasileiro, de Mário de Andrade, publicado em 1988, mas contendo material coletado até seus últimos dias de vida (1893-1945)
Na obra dos folcloristas, registros pioneiros nos Estudos de Folclore, de Luciano Galler, 1934, p. 59, e com a grafia “curimbó”, nos Elementos do folclore musical brasileiro, 1936, p. 80, de Flausino Valle. Os dois autores nunca estiveram no Pará e não revelaram as fontes da informação. Já Renato Almeida, na História da Música Brasileira, 1942, p.171, afirma, sem nunca ter visto ou ouvido, que “é samba de roda, com violas e instrumentos de percussão”
Nessa altura, porém, dois músicos paraenses já haviam estudado o carimbó e utilizado de suas fórmulas rítmicas em composições próprias: Waldemar Henrique (1905-1995) e Gentil Puget (1912-1948), que o conheceram na periferia de Belém nas décadas de 1920 e 30
O que surpreende, porém, é a manifestação musical mais antiga do carimbó que se introduziu, com o gambá, nas danças da ópera Bug-jargal, do maestro paraense José Cândido da Gama Malcher (1853-1921), apresentada pela no Teatro da Paz em 17/09/1890, depois no Teatro São José, em São Paulo em 30/12/1890, e no Teatro Lírico, Rio de Janeiro, em 3/03/1891. Vejam só, Gama Malcher pôs na ópera o carimbó. Isso em 1890!
Em 5/2/1958 o carimbó foi reintroduzido em Belém por iniciativa de intelectuais que rodeavam o cônsul Jorge Colman, no Centro Cultural Brasil-EUA, despertando novo interesse. Houve polêmica quanto ao nome: Paulo Maranhão defendeu corimbó; Bruno de Menezes, carimbó
Em pesquisa anterior, 1954, na ilha do Algodoal, e municípios de Maracanã, Marapanim e Curuçá, confirmei o nome carimbó. Pedro Tupinambá, em Salinópolis, chegou ao mesmo resultado em 1961
Em 1966 alunas e professoras do SEDEC apresentaram carimbó estilizado no palco do Teatro da Paz
Voltei a pesquisar o carimbó em 1968, com Marena Isdebski Salles, na Vigia. A pesquisa visou o carimbó ou zimba de Tia Pê – Francisca Lima do Espírito Santo – festeira consumada, patrocinadora de outras danças, folias, festas religiosas e promesseiras
Os documentos publicados na Revista Brasileira de Folclore, 1969, tiveram a fortuna da projeção erudita quando utilizados pelos compositores César Guerra-Peixe e Ernst Mahle em obras corais. Mahle criou ainda a excelente Suíte Carimbó, sobre os mesmos temas, gravada pelo duo pianística da UFPA Lenora Brito – Eliana Cutrim no CD A Música e o Pará – Obras para piano, 1994
Na década de 70 deu se a explosão do carimbo. Integrantes do Projeto Rondon gravaram e filmaram o carimbo em Irituia e em Capanema. Em 71 organizou-se em Marpanim o conjunto o Brasilandez, de Manoel Brasil. Em agosto de 72 o grupo Bico de Arara, de Curuçá, de mestre Róia – Zeferino Braga Leal – veio a Belém apresentar-se a uma promoção especial e ficou mais de 20 dias. Logo o carimbo se espalhou pela cidade, passando a ser dançado em todos os bairros
No caso de Róia, ele às vezes improvisava, outras tirava de letras memorizadas. Ele, mestre Lucindo, de Marapanim, e Tia Pê, da Vigia, são figuras lendárias do chamando autêntico carimbó
Neste pé, surgiu em 1972 o primeiro LP gravado pelo popular Verequete – Augusto Gomes Rodrigues – com o conjunto Uirapuru, de Icoaraci. E a Cantora Carmen Costa lançou no Teatro Opinião, no Rio de Janeiro, o ritmo paraense dentro do musical Chiclete com Banana
Em 1993, o carimbo ganhou a mídia nacional com os lançamentos de Mestre Cupijó, de Cametá (o mais eclético, que misturou carimbó, siriá e ritmos caribenhos), Mestre Vieira – que reivindica a criação da lambada, outra mistura -, Orlando Pereira, Eli Farias e Pinduca, que encontrou a fórmula do sucesso com o Carimbó e Sirimbó do Pinduca (Beverly AMCLP – 5194) e produziu a maior discografia do gênero
O carimbó se tornou música de consumo
Passado o interesse da indústria cultural por este produto derivado do velho batuque dos negros, enraizado na terra paraense, nutrido e modificado pelos caboclos, com elementos coreográficos oriundos também de vertentes europeias, continuou o carimbó a prosperar em seu ambiente natural. E retorna com o vigor dos antigos mestres Verequete e Lucindo em documentos recentes produzidos pela Secult e nesta nova versão dos herdeiros de Tia P& da Vigia
Vicente Salles
Brasília, maio de 2002
Para Nélio Palheta
Para saber quem foi Vicente Salles: https://pt.wikipedia.org/wiki/Vicente_Salles