20 de Novembro, Dia da Consciência Negra: Um Negro da Vigia para ser lembrado

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A data de 20 de novembro faz lembrar que Vigia não escapou da escravatura. Entretanto, foi palco de iniciativas abolicionistas muito antes de a Princesa Izabel assinar a Lei Áurea, em 1888; vigienses destacaram-se na campanha e ao menos um escravo, Basílio da Luz, recebeu a carta de alforria registrada em cartório. Esse negro, a respeito de quem não se tem detalhes, não entrou para a história nacional, como Zumbi dos Palmares, mas é justo lembrá-lo para trazer à tona um capítulo pouco destacado na história vigiense: a escravidão.

Em 2018, 56,10% dos brasileiros declaram-se negros, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do IBGE. A pesquisa revelou que, dos 209,2 milhões de habitantes do país, 19,2 milhões eram pretos; os pardos, 89,7 milhões de pessoas (para o IBGE, a população negra é a soma de pretos e pardos). Se no Brasil, a questão de raça ainda é um problema complexo, as estatísticas encarregam-se de dizer qual a cor da pele da maioria da população. Sem dúvida, uma herança dos africanos, reconhecida oficialmente por uma lei federal.

Celebremos a negritude também na Vigia! Nos arquivos do Cartório Raiol, hoje sob guarda da Sociedade Literária Cinco de Agosto, encontram-se documentos sobre a escravidão em solo vigiense. Inventários familiares revelam detalhes – inclusive lista nominal – desse “patrimônio” que, na ponta da pena, era um “ativo” registrado em livros de contabilidade e balanços empresariais e documentos familiares.

A história sempre tem mais de um lado: você, certamente, já ouviu falar que em Vigia houve quem lutasse contra a escravidão. E um abolicionista, Bertoldo Nunes, hoje patrono de uma escola de nível médio, foi um ativista do abolicionismo. Ele comemorou, em 1878 (10 anos antes da Lei Áurea), a vitória dos liberais nas eleições daquele ano registrando, no cartório de Vigia, cujo tabelião chamava-se  Raymundo Nunes da Costa, a “Carta de Liberdade” de Basílio da Luz, um cativo de “propriedade” de Joaquim Manoel de Carvalho.

Em Belém, a luta de Bertoldo contra a escravidão teve como palco a Associação Filantrópica de Emancipação de Escravos. Em Vigia, havia uma entidade semelhante, qual participava Vilhena Alves.

Um documento relevante para a histografia da escravidão em Vigia, que se acha no arquivo da sesquicentenária Sociedade Literária Cinco de Agosto, tem informações sobre cativos do Engenho Santo Antônio, de propriedade da Raiol & Irmãos, isto é, de Domingos Antônio Raiol, o Barão de Guajará – sem dúvida, patrimônio herdado do pai, Pedro Raiol, morto a 23 de julho de 1835 pelos cabanos. Há registros de outros “senhores” donos de escravos na Vigia.

A escravidão foi uma prática que marcou a trajetória da civilização humana em todas as épocas, em todos os continentes. Escravizar africanos movimentava a economia da Europa desde o século XVI, comandada por ingleses, franceses, espanhóis, holandeses e portugueses. Na América, o Brasil se destacou no chamado tráfico negreiro. Faltava mão de obra para a lavoura, e escravizar índios era causa de conflito com as ordens religiosas – principalmente a Companhia de Jesus. Importar negros africanos foi a solução para a falta de braços. Colonos ricos compravam negros africanos ou escravizavam índios, também submetidos ao trabalho na lavoura, no garimpo de ouro e diamante, na construção civil e atividades domésticas.

Capítulo à parte, a escravidão dos índios foi a principal questão entre os colonizadores e os missionários, sobretudo os jesuítas, que defendiam “naturais” – embora os religiosos os mantivessem cativos como mão de obra de suas fazendas. Hoje, isso é contraditório, mas, à época, era aceito pela Igreja. Em São Vicente (São Paulo, Capitania de Martim Afonso de Souza) havia três mil índios escravizados, em 1545. É pouco? Raposo Tavares, o famoso bandeirante, escravizou entre 40 a 60 mil índios.

A história considera como certo que quase cinco milhões de africanos atravessaram o Atlântico para serem escravizados no Brasil. São de 1535 – quando começam a funcionar engenhos de açúcar em Pernambuco – as notícias da chegada dos primeiros africanos ao país. E não se pense que o país só importou escravos: quinze anos depois que Pedro Álvares Cabral “descobriu” o Brasil, houve em Valência (Espanha) um leilão de índios brasileiros – diz o jornalista Laurentino Gomes em “Escravidão” (Globo Livros, 2019). Importante lembrar ainda que a escravidão de índios foi abolida só no final do século XVIII, por Marques de Pombal, o todo-poderoso Primeiro Ministro do império português, que em 1759 expulsou os jesuítas do Brasil (inclusive da Vigia).

Nenhum outro país do mundo escravizou tanta gente. Apesar de campanhas abolicionistas desde o início do século XVIII, o Brasil foi último país ocidental independente, e da América Latina, a extinguir completamente a escravatura.

A campanha abolicionista se fortaleceu no Brasil depois da libertação dos escravos na América do Norte, em 1863.  A Inglaterra pressionou Portugal e o Brasil,  após a independência, contra o tráfico negreiro; em 1850 o país aprovou a Lei Eusébio de Queiroz, que proibia o tráfico. Entretanto, a emancipação dos escravos foi lenta e gradual: somente 38 anos depois da lei aprovada em 1850 é que saiu a Lei Áurea, precedida pela Lei do Ventre Livre (1871), e a Lei dos Sexagenários (1885). Até que fosse assinasse a Lei Áurea, a 13 de maio de 1888, houve muito debate político, não sem pouca resistência dos senhores de engenho, cafeicultores, mineradores.

O livro “Ensaio Corográfico sobre a Província do Pará”, publicado por Antônio Ladislau Monteiro Baena em 1833, informa que Vigia tinha uma população de 5.130 pessoas – 2.120 brancos, 2.681 mestiços. Os escravos eram 329 – 3,29 por dento da população. Ainda assim, escravidão! A maioria, 4.80, era de pessoas livres (pag. 267, o autor não informa a data do censo, mas se deduz ser início do século XVIII).

A luta pela liberdade dos escravos não foi pequena. Durou quase três séculos: a mais autêntica resistência foi do quilombo Palmares (Alagoas) exatos 293 anos antes das “Leis Abolicionistas”. No dia 20 de novembro de 1695, o quilombo foi destruído. Zumbi, o líder, morto, e sua cabeça foi exposta num poste, em Recife. É por isso que se comemora o 20 de novembro como Dia da Consciência Negra, oficializada por lei federal de 2011.

Em Vigia, os negros não construíram uma igreja, como aconteceu em várias cidades do país, incluindo Belém (Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, na Campina). E não se tem notícia de que mereceram, por segregação, é claro, cemitério exclusivo. É bom não esquecer que a comunidade negra do Tauapará, hoje município de Colares, guarda parte da história da escravidão na Vigia. História e tradições, como a dança do carimbó, estão lá como testemunho daquela época.

Doravante, Vigia poderia lembrar que os negros africanos também contribuíram para a formação social local. Se não fosse a carta de alforria de Basílio da Luz, ele também seria um anônimo. Então, que se resgate não só as tristes histórias de escravidão e segregação, mas, ainda, os gestos humanistas e políticos de vigienses que lutaram para mudar a história. Bertoldo Nunes e o negro que ele ajudou a libertar merecem ser homenageados.

Quer continuar lendo sobre escravidão na Vigia, sugerimos também um artigo de autoria do jornalista Nélio Palheta, hoje Secretário de Cultura de Vigia, com a colaboração do historiador Igo Soeiro, presidente da Sociedade Literária Cinco de Agosto, sobre violência contra negros, ainda nos nossos dias, publicado no site: https://redepara.com.br/Noticia/212764/em-vigia-uma-associacao-secular-abrigou-abolicionistas.

No site www.cincodeagosto.tk você encontra documentos digitalizados sobre o assunto.

A ilustração deste artigo foi reproduzida do blog http://historiaporimagem.blogspot.com/2011/10/jean-baptiste-debret-um-jantar.html

Um jantar brasileiro” (1827, obra do pintor francês Jean-Baptist Debret)

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